Conto
Joaquim Rafael Soares
Rua da Guia, da Moeda, Madre de Deus. Bom Jesus. Cais da Alfândega, do Apolo, Zona do Porto.
Outrora fervilhava.
Gente, baixo clero, burgueses, portugueses, mercadores, alto clero. Nobres e sans-culottes. Ânforas, fardos, peças, carretéis. Rodilhas, polias, retrancas, carlingas e gáveas.
Bujarronas, lanternas e tombadilhos. Escravos, senhores, ferros e argolas. Capas, sedas, veludos e estopas. Espadas, floretes e adagas. Cromos, pelicas e pés-no-chão.
Vicissitudes, revoltas e motins.
Guerras. Mão do homem. Descuido de Deus.
Cais do porto, zona portuária. Rebocadores e guindastes. Práticos, marinheiros e estivadores. Sobrados e sacadas. Camas, suores e gemidos. Vinho, música e tabaco. Amores, rusgas e pendengas. Dores, gozos e torpores. Mortes, talhos e navalhas. Cafetões e meretrizes.
Moléstias. Decadência.
Ostracismo.
Renasce o bairro, iluminam-se mentes. Restaura-se, resgata-se e reforma-se.
Projetos, halls e plotagem. Granitos, novas línguas, modas e moedas. Banner, leiautes e portifolios.
Ressuscitam os tambores silenciosos dos maracatus. Um shopping, uma Livraria, um café, restaurantes de finas iguarias, uma igreja reformada sem cismas, refrigerada.
Da Rua da Concórdia, outra ilha, do tempo remanescente, primo tempo que fervilhava, em bronze a estátua do abolicionista aponta o cais. Casaca, colete e monóculo. Bigodes jônicos, suíças. Ao sopé a raça servil liberta, rotos grilhões. Ao largo aponta Nabuco, mão direta, mudo discurso. Petrificado.
Esquecido da retórica libertária o vulgo achincalha. O povo que tudo escangalha, ao herói frase empresta, diz: a zona é por ali, indica aos incautos passantes – galhofa -, o meretrício seu Joaquim? Lá! O gesto responde.
Na profunda noite, no silêncio negro das vielas, no silvar gélido do terral nas pedras de lastro das caravelas que ainda toscas vestem o chão, milhares de espectros de todas as eras transitam. Divertem-se com o pilheriar da turba, com o farfalhar de etéreas saias.