De uma velha história do tempo do açúcar.
XXIII
Sinhá passou aqui fora da hora dela. Pediu-me para banhar e trocar o pijama. Falou até em aparar barba. Não quero saber de navalha. Disse que Padre Alberto da Gameleira vinha visitar-me. Por que esse vigário anda aqui? Donana quer que me confesse. Penso que ela tem medo que eu morra de repente. Vou morrer não, acho, temo muito. Sinhá anda preocupada, sinto. Veio com uma história que passei a semana atrasada muito ruim, só dormindo, conversando com os sonhos. Mastigando nomes do passado. Não lembro disso. As semanas aqui passam iguais, misturo os dias.
- Damião, o vigário já chegou?
- Chegou sim padrinho, desceu para benzer a caldeira mais o povo da casa grande.
- Damião, o que esse padre ta fazendo aqui no meio da semana?
- Hoje não é sábado? Senhor meu padrinho. Não tem amanhã o batizado do menino?
- Tem Damião, mas quem perguntou fui eu.
O batizado, o batizado do filho de Lúciamaria, ou será de Conceição? Meus netos são... Esqueci-me desse batizado. Não quero me confessar, quero agradar a sinhá. Não posso desgostar. O padre entra, digo o que quero, não o que sinto. Tenho pecado em pensamentos e por omissão. Sem atos e palavras. Não saio dessa rede.
Não gosto desse padre, minha mãe perdoe, mas se visse um anjo, preteria o padre Alberto.
Dando absolvição faço as vontades de Donana. Não existe mais a minha vontade, meu reino, minhas terras, minhas determinações. Os gostos do Senhor, do dono da coroa. Recitava Joaquim Xindes, “Na minha casa quatro coisas não vai, mulher chamada Sandra, homem chamado Braz, calça de bolso na bunda, paletó rasgado atrás.” Já nem sei quem anda na minha casa, não tenho mais casa, só o salão azul é meu. Nesse só entra quem quero. Onde andará Joaquim Xindes? Acho que morreu. Morreu de constipação, lembrei. Gordo que nem cuspir podia. Senhor de muitas loas.
De onde desencavou dinheiro esse agalegado para comprar o São Roque, não é engenho de poucas terras. Chapadão, várzea grande. Será que desencantou botija? Minha é que não foi, nunca enterrei pataca, o que juntei foi para os dotes, lastro das naus dos genros. Tio Francisco passou a vida procurando uma botija que deram a ele em sonho. A alma disse, vai Francisco no limoeiro. O homem procurou o engenho quase todo, viajou duas vezes para a vila de Limoeiro, achando que fosse lá. Certa feita cavou no engenho de um amigo, o Coronel Pestana, daquela vila, quase um mês.
Nada, morreu sem encontrar.
Zeca meu primo, filho mais novo, muitos anos depois, mandou desmanchar uma senzala velha, puxar um caminho para a capela. Debaixo de um pé de limão mirradinho, no oitão da derrubada topou com o prometido pelas almas. Panela grande recheada de dobrões holandeses.
Não fez bom proveito.
Gastou em vão, não rendeu um palmo de terra a mais nas posses dele. O prometido não era ele, nada produziu. Dinheiro dado em sonho tem destino certo, se passado adiante amaldiçoa, se vai fácil como veio.
Ia perguntar a sinhá sobre a semana do batizado, agora Damião já disse. Não vou à capela, Deus me livre, aquele lá ouvido missa perto dos ossos dos meus pais, Perdoe, melhor nem pensar, vou ter que contar mais ao vigário. Não quero que se demore. Avie essa absolvição, faça a vontade da Senhora e me largue aqui com os meus sonhos, meu passado.
Essa noite vô não brigou, fomos ao barreiro. Ensinou-me a fazer um boi de barro, mas eu não tinha caixa de menino, era homem feito, não com essa barba branca de hoje, mas com as minhas suíças bem aparadas da juventude, bigode farto, sobrando nas bigodeiras das xícaras.
Vovô estava novo, um homem garboso.
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