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domingo, 30 de agosto de 2009
sábado, 29 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 10 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar
X
Conhecer bem não conhecia, as referências foram boas. Donana disse, ajeitando, “com Jesus deu certo, e a família não era desconhecida?” Só porque da mata norte? Desconhecida para ela. Conheço muito bem, aparentados com o meu avô. E não veio de lá o pai do meu pai? Contava que mudou por uma vergonha que passou. Acertou com o presidente da província para abrir um trecho de estrada, fio de bigode em garantia, que em três meses entregava pronta. Nesse ano o inverno foi pesado o primeiro mês choveu o encomendado para o ano todo, meu avô teve muita dificuldade, os homens abriam a picada, batiam o barro e a chuva desmanchava, dobrou os trabalhadores, mandou buscar carroças, ferramentas, não teve jeito, a obra não rendia. Saibro batido, saibro lavado. Meu avô apertava os cativos, na derrubada das matas perdeu mais de trinta homens, dos sucedidos acidentes com os paus, de picada de cobra, fora os que aproveitavam para largar. Não deu. A empreitada levou quatro meses e dezessete dias. O Senhor meu avô prestou contas ao presidente, não quis receber nada, de vergonha. Vendeu tudo, terra, casa, cativos, deu quase de graça, mudou-se, vexado por não ter cumprido o prazo ajustado. Botou a mulher, as crianças e as tralhas em treze bestas e em quatro carroções. Saiu sem saber direito para onde ia, acabou aqui na sul, com muita dificuldade, chegou a vender arreios na feira de Camela para ajudar na renda. Comprou uma terrinha, foi aumentando, prosperando, meu pai pegou as terras do engenho quase já na forma hoje. Aumentado, próspero. Fiquei com o engenho principal, comprou muita terra, longe, perto, todos os meus irmãos começaram com um bom pedaço. As meninas tiveram bom dote. Chico vendeu as dele e foi ser Doutor na corte, é gosto, o engenho, tinha uma várzea grande, terra plana, dava na beira da praia com duas fazendas de coco. Vale pouco, o cultivo não dá muito trabalho, é só ter gente para desbastar os pés. As terras da beirada d’água é que ninguém quis. Um banho salgado me fazia bem, um ou outro. Minha mãe gostava, ordem do médico, trinta banhos salgados por verão. Morar perto daquela friagem, vento de maresia, isso não é para gente, é coisa de caranguejo.
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 09 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar
IX
Lúciamaria estava com mais de dezesseis anos e solteira, esperei para fazer o casamento com o filho de Armando Albuquerque, senhor do São Roque, mas o menino resolveu estudar medicina em Salvador, lá acabou casando com uma filha de um Desembargador, perdi de vista.
Pedi a Donana para procurar informação com as freiras de Nossa Senhora do Carmo, justo nesse tempo, na festa da botada de cumeeira da casa grande do Engenho Majestade do Senhor Pedro de Souza Leão, fui apresentado ao pai desse daí o Senhor Wanderley do Tabocas. Pareceu-me um homem de bem, o rapaz alto, bem aparentado, olhos claros, agalegado. Lúciamaria agradou-se. Conversei muito com o homem, não podia imaginar que o filho não tivesse saído ao pai, ou mesmo talvez saiu, me enganei, é muito difícil, nunca aconteceu, mas pode, sabia eu lá se o velho não escondia esses defeitos? Nada atinei, convidei a família para um almoço na nossa casa. A Senhora mãe mostrou-se muito educada, de finos trejeitos, salamaleques, alva, cabelo de milho, vestida em rendas da Madeira. Trouxe acompanhando duas aias, uma mulata bem clara, quase branca, a cativa até falava francês, fez envergonhar as daqui que nem o português falam direito, carregam com o dialeto cantado deles, botando vício nas crianças da casa Grande. Nessa visita achei que não havia por que mais esperar. Marcamos o noivado. O velho disse que na festa acertaríamos os detalhes do dote. O Mata Grande já apalavrado nesse tempo, corri com a compra. Apeguei-me a essa menina, era a caçula queria que morasse aqui pertinho, fazendo divisa com as minhas terras, as outras acabaram ficando muito longe. Pensei em criar os meus netos, só tive filhas, os netos são filhos que não tive, meu sangue sem máculas, como dizia minha mãe, filho das minhas filhas meus netos são, dos meus filhos serão ou não.
Foi outro erro comprar esse engenho fronteiriço, não podia adivinhar.
IX
Lúciamaria estava com mais de dezesseis anos e solteira, esperei para fazer o casamento com o filho de Armando Albuquerque, senhor do São Roque, mas o menino resolveu estudar medicina em Salvador, lá acabou casando com uma filha de um Desembargador, perdi de vista.
Pedi a Donana para procurar informação com as freiras de Nossa Senhora do Carmo, justo nesse tempo, na festa da botada de cumeeira da casa grande do Engenho Majestade do Senhor Pedro de Souza Leão, fui apresentado ao pai desse daí o Senhor Wanderley do Tabocas. Pareceu-me um homem de bem, o rapaz alto, bem aparentado, olhos claros, agalegado. Lúciamaria agradou-se. Conversei muito com o homem, não podia imaginar que o filho não tivesse saído ao pai, ou mesmo talvez saiu, me enganei, é muito difícil, nunca aconteceu, mas pode, sabia eu lá se o velho não escondia esses defeitos? Nada atinei, convidei a família para um almoço na nossa casa. A Senhora mãe mostrou-se muito educada, de finos trejeitos, salamaleques, alva, cabelo de milho, vestida em rendas da Madeira. Trouxe acompanhando duas aias, uma mulata bem clara, quase branca, a cativa até falava francês, fez envergonhar as daqui que nem o português falam direito, carregam com o dialeto cantado deles, botando vício nas crianças da casa Grande. Nessa visita achei que não havia por que mais esperar. Marcamos o noivado. O velho disse que na festa acertaríamos os detalhes do dote. O Mata Grande já apalavrado nesse tempo, corri com a compra. Apeguei-me a essa menina, era a caçula queria que morasse aqui pertinho, fazendo divisa com as minhas terras, as outras acabaram ficando muito longe. Pensei em criar os meus netos, só tive filhas, os netos são filhos que não tive, meu sangue sem máculas, como dizia minha mãe, filho das minhas filhas meus netos são, dos meus filhos serão ou não.
Foi outro erro comprar esse engenho fronteiriço, não podia adivinhar.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
sábado, 22 de agosto de 2009
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 7 e 8 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar
VII
Casei as quatro, Lúciamaria parecia que ia ficar para tia. Pensei em mandar para o convento, antes tivesse mandado, melhor seria. A menina era muito prendada, cuide dela como das outras a mesma educação, essa, não estava com muita sorte em arranjar marido. Todas tiveram professor de francês e de piano. Liam, bordavam, cozinhavam, mesmo que nunca precisassem entrar numa cozinha sabiam mandar, fiscalizar os serviçais. Conheciam a história dos santos e os mandamentos da igreja, muito prendadas. Em matéria de costura desconheço na região moças assim. Jamais fiz questão em comprar os tecidos e aviamentos, recebia com todo o gosto os mascates franceses no engenho. Tinha os meus cuidados. Nunca tive tempo de aprender esses refinamentos de língua estrangeira, temia que os vendedores pudessem soltar alguma graça para as moças, costume desse povo muito moderno de pouca vergonha, e eu nunca iria ficar sabendo. O cuidado que tinha era de botar assistindo a palestra um negro de minha confiança, a ordem era ficar atento as feições das meninas, se alguma delas corasse ao ouvir do francês alguma coisa, podia quebrar o assanhado de cacete. Nunca ocorreu, ainda bem, mas desconfio que o mascate fosse alertado por elas da serventia daquele escravo armado de cacete ali na sala, antes de qualquer assunto.
Já estava conformado com a menina freira. Apareceu esse Wanderley, aquele acolá que acabou por me levar tudo. O engenho, a casa, a minha vontade de viver.
Meu pai me deu essas terras eu mal tinha botado barba, derrubei mais os negros todas as árvores da colina, rabisquei no barro as fundações dessa casa. Fiz, fui valente, trabalhei feito um condenado. Nunca tive medo de homem de bicho nem de assombração, estou velho, doente, não tenho mais forças. Deus me livre esbarrar com esse daí. No salão azul ele não entra. Pode ficar com o resto da casa. Saio não, da minha rede não desço.
Amanhã vou mandar chamar Amaro aqui ele vai me dá conta dos pães de açúcar que foram vendidos esse mês, afinal ainda sou o Senhor destas terras, tenho que ter ciência.
VIII
Cortei o morro no cocuruto, bem no cume, a casa grande tinha que ficar no mais alto do engenho, uma capelinha consagrada a Santo Antônio, homenagem aos meus pais devotos. Mandei trazer os ossos para cá, contra a vontade dos meus irmãos. Aparentado dos meus avôs portugueses, sim, minha avó chegava a ter parentesco com o santo. Orientei - como me ensinou pai -, a casa na conveniência dos ventos. Cerquei-a de terraços, fiz uma base boa, o socavão elevou, deu imponência, sete degraus para chegar ao assoalho. O portal principal para o Nordeste, os fundos para o sul, a casa ficou fresca no verão e abrigada no inverno. Fiz questão dos três salões, uma casa que se recebe tem que ter lugar para palestras e divertimentos. O salão principal, das refeições, mandei pintar de branco, meu pai deu-me a mesa de mogno com os pés trabalhados, doze lugares, cadeiras austríacas, torneadas. Mandei buscar o lustre de cristal na Europa, uma obra de arte lapidada em Veneza, do porto para o engenho levou mais de quinze dias em um carro de boi, engradado, forrado com palha. O salão a oeste pintei de verde, esse daqui do leste de azul. O verde era de música, comprei um piano alemão, sonoro, todo ano vinha um afinador da capital especialmente contratado. Tinha canapés e cadeiras, chapeleiros e cristaleiras, era uma sala agradável, indicada para a noite, estar das visitas, reuniões com os parentes e vizinhos, senhores de outras terras. Esse azul ao leste, abrigado do sol da tarde, era o salão das sestas, com os armadores de rede e uma pequena mesa, as meninas usavam-no eventualmente, quando sem visitas, para estudos, tinha alguns cabides e armários. Para trás da casa os quartos e a conzinha, no quintal os banheiros. Fiz com muito esmero tudo isso. Ocupo só o salão azul, que não tem mais a beleza daquele tempo, as paredes precisam de cal, o cupim ta mordendo ali na soleira, mas ainda é pouco a feiúra do salão, maior é a minha, e a que sinto por dentro.
VII
Casei as quatro, Lúciamaria parecia que ia ficar para tia. Pensei em mandar para o convento, antes tivesse mandado, melhor seria. A menina era muito prendada, cuide dela como das outras a mesma educação, essa, não estava com muita sorte em arranjar marido. Todas tiveram professor de francês e de piano. Liam, bordavam, cozinhavam, mesmo que nunca precisassem entrar numa cozinha sabiam mandar, fiscalizar os serviçais. Conheciam a história dos santos e os mandamentos da igreja, muito prendadas. Em matéria de costura desconheço na região moças assim. Jamais fiz questão em comprar os tecidos e aviamentos, recebia com todo o gosto os mascates franceses no engenho. Tinha os meus cuidados. Nunca tive tempo de aprender esses refinamentos de língua estrangeira, temia que os vendedores pudessem soltar alguma graça para as moças, costume desse povo muito moderno de pouca vergonha, e eu nunca iria ficar sabendo. O cuidado que tinha era de botar assistindo a palestra um negro de minha confiança, a ordem era ficar atento as feições das meninas, se alguma delas corasse ao ouvir do francês alguma coisa, podia quebrar o assanhado de cacete. Nunca ocorreu, ainda bem, mas desconfio que o mascate fosse alertado por elas da serventia daquele escravo armado de cacete ali na sala, antes de qualquer assunto.
Já estava conformado com a menina freira. Apareceu esse Wanderley, aquele acolá que acabou por me levar tudo. O engenho, a casa, a minha vontade de viver.
Meu pai me deu essas terras eu mal tinha botado barba, derrubei mais os negros todas as árvores da colina, rabisquei no barro as fundações dessa casa. Fiz, fui valente, trabalhei feito um condenado. Nunca tive medo de homem de bicho nem de assombração, estou velho, doente, não tenho mais forças. Deus me livre esbarrar com esse daí. No salão azul ele não entra. Pode ficar com o resto da casa. Saio não, da minha rede não desço.
Amanhã vou mandar chamar Amaro aqui ele vai me dá conta dos pães de açúcar que foram vendidos esse mês, afinal ainda sou o Senhor destas terras, tenho que ter ciência.
VIII
Cortei o morro no cocuruto, bem no cume, a casa grande tinha que ficar no mais alto do engenho, uma capelinha consagrada a Santo Antônio, homenagem aos meus pais devotos. Mandei trazer os ossos para cá, contra a vontade dos meus irmãos. Aparentado dos meus avôs portugueses, sim, minha avó chegava a ter parentesco com o santo. Orientei - como me ensinou pai -, a casa na conveniência dos ventos. Cerquei-a de terraços, fiz uma base boa, o socavão elevou, deu imponência, sete degraus para chegar ao assoalho. O portal principal para o Nordeste, os fundos para o sul, a casa ficou fresca no verão e abrigada no inverno. Fiz questão dos três salões, uma casa que se recebe tem que ter lugar para palestras e divertimentos. O salão principal, das refeições, mandei pintar de branco, meu pai deu-me a mesa de mogno com os pés trabalhados, doze lugares, cadeiras austríacas, torneadas. Mandei buscar o lustre de cristal na Europa, uma obra de arte lapidada em Veneza, do porto para o engenho levou mais de quinze dias em um carro de boi, engradado, forrado com palha. O salão a oeste pintei de verde, esse daqui do leste de azul. O verde era de música, comprei um piano alemão, sonoro, todo ano vinha um afinador da capital especialmente contratado. Tinha canapés e cadeiras, chapeleiros e cristaleiras, era uma sala agradável, indicada para a noite, estar das visitas, reuniões com os parentes e vizinhos, senhores de outras terras. Esse azul ao leste, abrigado do sol da tarde, era o salão das sestas, com os armadores de rede e uma pequena mesa, as meninas usavam-no eventualmente, quando sem visitas, para estudos, tinha alguns cabides e armários. Para trás da casa os quartos e a conzinha, no quintal os banheiros. Fiz com muito esmero tudo isso. Ocupo só o salão azul, que não tem mais a beleza daquele tempo, as paredes precisam de cal, o cupim ta mordendo ali na soleira, mas ainda é pouco a feiúra do salão, maior é a minha, e a que sinto por dentro.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
domingo, 16 de agosto de 2009
Paulo Gervais
Oi Paulinho,
Obrigado pelos elogios ao blog, acompanho há algum tempo o seu Martirial e o Viagem ao fim da noite de Nivaldo. Quem planta cana em ladeira é inspirado em uma antiga história do meu avô sobre um parente caído em desgraça por uma negociação de dote mal feita. Tenho-a quase toda concluída, publico no blog o que consigo revisar e resumir, na verdade é um exercício de luta contra a minha natural prolixidade. Permito-me apenas cerca de mil e quinhentos caracteres a cada capítulo. Silogildo (e suas musas) nasceu de uma brincadeira em sala para os meus alunos de Filosofia e Ética, mostrava com humor os conceitos de lógica, mas, também, acabou virando um treinamento para concisão. A tirinha faz a gente compactar em, no máximo, três atos o que quer dizer, é, mal comparando, quase um haicai (invejo-o por saber fazê-los tão bem). Disponha do blog para comentar como bem entender, o melhor é que serve para a gente se comunicar e amainar a aspereza do cotidiano.
Um forte abraço,
Joaquim
Obrigado pelos elogios ao blog, acompanho há algum tempo o seu Martirial e o Viagem ao fim da noite de Nivaldo. Quem planta cana em ladeira é inspirado em uma antiga história do meu avô sobre um parente caído em desgraça por uma negociação de dote mal feita. Tenho-a quase toda concluída, publico no blog o que consigo revisar e resumir, na verdade é um exercício de luta contra a minha natural prolixidade. Permito-me apenas cerca de mil e quinhentos caracteres a cada capítulo. Silogildo (e suas musas) nasceu de uma brincadeira em sala para os meus alunos de Filosofia e Ética, mostrava com humor os conceitos de lógica, mas, também, acabou virando um treinamento para concisão. A tirinha faz a gente compactar em, no máximo, três atos o que quer dizer, é, mal comparando, quase um haicai (invejo-o por saber fazê-los tão bem). Disponha do blog para comentar como bem entender, o melhor é que serve para a gente se comunicar e amainar a aspereza do cotidiano.
Um forte abraço,
Joaquim
sábado, 15 de agosto de 2009
sexta-feira, 14 de agosto de 2009
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
terça-feira, 11 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 5 e 6 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar.
V
Conceição demorou um pouco, ficou mais complicado arrumar terra. Comprei um pedaço mais pro sul, preparei para ela: Derrubei a mata; plantei de cana; fiz um cercado bom, mandei buscar umas reses no sertão. Pouca terra, mas uma beleza, muita água, muita produção. Um bom dote para começar uma vida.
Acertei com o Senhor José Cabral de Melo Azevedo do Engenho Roda d’água, com o filho mais novo dele, Inácio, foi um bom negócio, o velho era sovina, mas boa gente. Procedência. Fez questão do dote todo e ainda regateou, mandei mais vinte cabeças, quatro negos moços. Depois do casamento quase não deixou mais a menina aparecer. É um doce ela, os Melazedos são de muitas reservas, esquisitices. Conceição me contou que tem que ser muito astuta para viver naquela família. A menina chega a furta da conzinha umas sacas de farinha para os escravos, economizam comida, pecado, os cativos comendo pouco, passando privação. Não tolero desperdícios, gulas, exageros, mas, fartura na mesa é agradecimento à clemência de Deus. Ele dá, nós temos que distribuir.
A avareza o velho Melazedo não inventou, herdou. Meu pai contava que viu muitas vezes, no tempo que o Senhor José era menino, por artes do pai dele, um neguinho vestido de encarnado montado na cancela do engenho. Para os viajantes da estrada real o menino recitava o recado aos berros: “Seu Melazedo quebrou, o engenho esse ano não mói dez sacas, a cana flechou a enxurrada lavou as touceiras das encostas, é muito prejuízo para um cristão só, tá arruinado o meu senhor”. Espantava quem pudesse pensar em pedir qualquer coisa. A miserabilidade vem de longe. Todo mundo sabe.
VI
Na minha casa sempre teve fartura à mesa, meu pai ensinou isso a nós todos, comida não se estraga, mas também não economiza. Contava que tio Francisco, senhor do Linda Flor, certa vez, acolhendo um viajante que pediu guarida, um mascate, sentou-o à mesa com todo mundo, almoçavam as visitas, conhecidas ou não, a mesa principal, da família. O homem não tinha muita educação, comeu feito um bicho, meu tio mandou buscar mais na conzinha, duas vezes. Para a sobremesa chegou duas terrinas grandes, uma com o mel do engenho e outra com farinha, porção farta, dava para todos da mesa. O homem pegou a cuia do mel, derramou a de farinha dentro e comeu tudo, na vasilha mesmo, sem deixar nada para ninguém. Ao acabar, limpou a boca e disse de pilhéria: “Não tem mel nesse engenho não? “ Meu tio nada respondeu, deixou o homem seguir a viagem, ia à capital, o Senhor do Linda Flor adiou a desforra. Tempos depois, na volta, o mascate pediu novamente abrigo, Tio Chico acolheu. Deu-lhe almoço, no fim da refeição disse que tinha um “melzinho” para a sobremesa. Mandou dois escravos trazerem um tacho cheio de mel, colocou um saco de farinha dentro, armou os negros com chibatas, e ordenou: “façam-no comer tudo, se parar abaixe o chicote nele”. O infeliz não morreu porque a Sinhá minha tia intercedeu. Ele não passara ainda de um quarto do tacho e já se esvaia em disenterias, nas calças mesmo, diante de todos. Tio soltou o cristão que se foi correndo, desmoralizado, nunca mais passou nem por perto do engenho. Aprendeu a não desfazer de quem oferece amparo.
Acho que vou mandar abrir a janela, ouvi uma conversa que aquele tinha ido à capital vender o açúcar, melhor não, o vento virou sul, a friagem é capaz de me resfriar. Sinhá Donana não veio hoje aqui. A negrinha não tirou o pinico, meu café tava frio, deu-me uma melancolia. Vou numa madorninha, quem sabe sinhá não chega me trazendo umas compotas?
V
Conceição demorou um pouco, ficou mais complicado arrumar terra. Comprei um pedaço mais pro sul, preparei para ela: Derrubei a mata; plantei de cana; fiz um cercado bom, mandei buscar umas reses no sertão. Pouca terra, mas uma beleza, muita água, muita produção. Um bom dote para começar uma vida.
Acertei com o Senhor José Cabral de Melo Azevedo do Engenho Roda d’água, com o filho mais novo dele, Inácio, foi um bom negócio, o velho era sovina, mas boa gente. Procedência. Fez questão do dote todo e ainda regateou, mandei mais vinte cabeças, quatro negos moços. Depois do casamento quase não deixou mais a menina aparecer. É um doce ela, os Melazedos são de muitas reservas, esquisitices. Conceição me contou que tem que ser muito astuta para viver naquela família. A menina chega a furta da conzinha umas sacas de farinha para os escravos, economizam comida, pecado, os cativos comendo pouco, passando privação. Não tolero desperdícios, gulas, exageros, mas, fartura na mesa é agradecimento à clemência de Deus. Ele dá, nós temos que distribuir.
A avareza o velho Melazedo não inventou, herdou. Meu pai contava que viu muitas vezes, no tempo que o Senhor José era menino, por artes do pai dele, um neguinho vestido de encarnado montado na cancela do engenho. Para os viajantes da estrada real o menino recitava o recado aos berros: “Seu Melazedo quebrou, o engenho esse ano não mói dez sacas, a cana flechou a enxurrada lavou as touceiras das encostas, é muito prejuízo para um cristão só, tá arruinado o meu senhor”. Espantava quem pudesse pensar em pedir qualquer coisa. A miserabilidade vem de longe. Todo mundo sabe.
VI
Na minha casa sempre teve fartura à mesa, meu pai ensinou isso a nós todos, comida não se estraga, mas também não economiza. Contava que tio Francisco, senhor do Linda Flor, certa vez, acolhendo um viajante que pediu guarida, um mascate, sentou-o à mesa com todo mundo, almoçavam as visitas, conhecidas ou não, a mesa principal, da família. O homem não tinha muita educação, comeu feito um bicho, meu tio mandou buscar mais na conzinha, duas vezes. Para a sobremesa chegou duas terrinas grandes, uma com o mel do engenho e outra com farinha, porção farta, dava para todos da mesa. O homem pegou a cuia do mel, derramou a de farinha dentro e comeu tudo, na vasilha mesmo, sem deixar nada para ninguém. Ao acabar, limpou a boca e disse de pilhéria: “Não tem mel nesse engenho não? “ Meu tio nada respondeu, deixou o homem seguir a viagem, ia à capital, o Senhor do Linda Flor adiou a desforra. Tempos depois, na volta, o mascate pediu novamente abrigo, Tio Chico acolheu. Deu-lhe almoço, no fim da refeição disse que tinha um “melzinho” para a sobremesa. Mandou dois escravos trazerem um tacho cheio de mel, colocou um saco de farinha dentro, armou os negros com chibatas, e ordenou: “façam-no comer tudo, se parar abaixe o chicote nele”. O infeliz não morreu porque a Sinhá minha tia intercedeu. Ele não passara ainda de um quarto do tacho e já se esvaia em disenterias, nas calças mesmo, diante de todos. Tio soltou o cristão que se foi correndo, desmoralizado, nunca mais passou nem por perto do engenho. Aprendeu a não desfazer de quem oferece amparo.
Acho que vou mandar abrir a janela, ouvi uma conversa que aquele tinha ido à capital vender o açúcar, melhor não, o vento virou sul, a friagem é capaz de me resfriar. Sinhá Donana não veio hoje aqui. A negrinha não tirou o pinico, meu café tava frio, deu-me uma melancolia. Vou numa madorninha, quem sabe sinhá não chega me trazendo umas compotas?
sábado, 8 de agosto de 2009
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 3 e 4 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar
III
Tio Artur do Mamucaba, irmão de minha mãe. Eu caçoava dele. Não tinha juízo, achava. Mamãe não gostava. Respeitava. Hoje entendo o nervoso dele. Um dia ia para a feira montado numa besta, muita chuva, o massapé escorregando, lama lisa. Na curva antes da ponte do Una, ponte comprida, no meio de duas curvas, já chegando, o arreio correu, sela molhada, animal liso, ensopado, tio caiu na lama. Destroncou um ombro, sentiu muita dor.
Nunca sarou de todo.
O nervoso não deixou mais o pobre. Toda vez, chegando à curva, dizia à mulher que seguia em outra montaria, “vou cair Sinhá, vou cair”, e caia, quase sempre caia mesmo. A mulher já mandava um moleque desmontado acompanhando, para aparar a queda. Caia sempre, o nervoso derrubava. Sei agora o que é isso. Minha mãe também. Os nervos muito fracos. Tinha muito medo da morte. Dormia com o escapulário amarrado. Se passasse mal e perdesse os sentidos não perigava tirarem no alvoroço do socorro. Com escapulário Nossa Senhora ajuda nos desembaraços da entrada do céu. O meu não largo, puxei, nisso puxei. Minha mãe botou para morrem muitas vezes de nervoso, de chamar padre para as unções, depois melhorava, passava a agonia, voltava boazinha. Morreu muito velha, variando, não sabia de nada, perdeu o tino e o medo. Deus foi bom com ela.
Quando eu era novo não ligava muito, sentia uns sustos, uns vazios na boca do estomago, mas não deixava me abater, a lida era grande, tinha que arrancar da terra sustento e o dote das meninas.
Com Socorrinho e Carmita não penei muito, acertei com um parente meu daqui de perto, Senhor Dácio Cavalcanti do engenho São Pedro. Casei as duas com os dois filhos deles, dei o Mamucabinha a uma e a parte maior do Pedra Alta a outra. Ficou tudo em casa, gente de bem, conheço toda a linhagem quase todos da região são Cavalcanti. Quem não é Cavalcanti é cavalgado. Cavalcanti tê-i-tí como dizia o meu pai, dos autênticos.
IV
Dessa janela vejo o curral, a capelinha, a roda d’água do engenho e a casa de purgar. Vejo quando Sinhá Donana vai rezar na capela, avisto a sombrinha bordada, as amas acompanhando, carregando os terços e missais. Nesse Santo Antônio trouxe padre para rezar missa. Não fui, rezei daqui, o santo sabe do meu tormento. Não vou ao Ofício ao lado daquele lá. Não posso. Deus que me perdoe. Dói-me saber que ele acolá na capela onde os ossos do meu pai e da minha mãe estão guardados.
Não quero abrir mais essa janela, o abafado de fevereiro já se foi, agora é mais fresco. O telhado é alto, a casa grande mandei construir bem pensada, no alto, orientada nos ventos. Nunca atinei em ficar prisioneiro nela, fiz gaiola e me tranquei. Que ironia Santo Cristo.
A última vez da janela aberta aquele passou montado perto da varanda, olhou para dentro, me encarou, eu vi. Olhos de gente sem vida, azul embaçado, medonho. Montava o baio Comandante. O cavalo é meu, disse a Amaro, se eu não montar mais o animal se aposenta.
Diabo de nego que não vem mais cá. Bandeou-se pro sarará? Que traição, papai criou ele como meu irmão, nunca foi para o tronco, cresceu livre, bem tratado. Aliás, nunca vi negro nenhum do meu pai no tronco. Não era de castigar os cativos. Puxei a ele, não levantei a mão para um negro da casa até hoje. Será que Amaro se esqueceu de tudo? Ingrato.
Vou mandar chamar mais uma vez, se não obedecer é porque foi mesmo, bandeou-se.
Donana falou de novo em voltar para o quarto. Volto se ele sair da casa.
Disse a ela, só peço que não deixem esse lá entrar aqui no salão azul. Que fique com a casa toda, mas aqui não. É minha última vontade.
III
Tio Artur do Mamucaba, irmão de minha mãe. Eu caçoava dele. Não tinha juízo, achava. Mamãe não gostava. Respeitava. Hoje entendo o nervoso dele. Um dia ia para a feira montado numa besta, muita chuva, o massapé escorregando, lama lisa. Na curva antes da ponte do Una, ponte comprida, no meio de duas curvas, já chegando, o arreio correu, sela molhada, animal liso, ensopado, tio caiu na lama. Destroncou um ombro, sentiu muita dor.
Nunca sarou de todo.
O nervoso não deixou mais o pobre. Toda vez, chegando à curva, dizia à mulher que seguia em outra montaria, “vou cair Sinhá, vou cair”, e caia, quase sempre caia mesmo. A mulher já mandava um moleque desmontado acompanhando, para aparar a queda. Caia sempre, o nervoso derrubava. Sei agora o que é isso. Minha mãe também. Os nervos muito fracos. Tinha muito medo da morte. Dormia com o escapulário amarrado. Se passasse mal e perdesse os sentidos não perigava tirarem no alvoroço do socorro. Com escapulário Nossa Senhora ajuda nos desembaraços da entrada do céu. O meu não largo, puxei, nisso puxei. Minha mãe botou para morrem muitas vezes de nervoso, de chamar padre para as unções, depois melhorava, passava a agonia, voltava boazinha. Morreu muito velha, variando, não sabia de nada, perdeu o tino e o medo. Deus foi bom com ela.
Quando eu era novo não ligava muito, sentia uns sustos, uns vazios na boca do estomago, mas não deixava me abater, a lida era grande, tinha que arrancar da terra sustento e o dote das meninas.
Com Socorrinho e Carmita não penei muito, acertei com um parente meu daqui de perto, Senhor Dácio Cavalcanti do engenho São Pedro. Casei as duas com os dois filhos deles, dei o Mamucabinha a uma e a parte maior do Pedra Alta a outra. Ficou tudo em casa, gente de bem, conheço toda a linhagem quase todos da região são Cavalcanti. Quem não é Cavalcanti é cavalgado. Cavalcanti tê-i-tí como dizia o meu pai, dos autênticos.
IV
Dessa janela vejo o curral, a capelinha, a roda d’água do engenho e a casa de purgar. Vejo quando Sinhá Donana vai rezar na capela, avisto a sombrinha bordada, as amas acompanhando, carregando os terços e missais. Nesse Santo Antônio trouxe padre para rezar missa. Não fui, rezei daqui, o santo sabe do meu tormento. Não vou ao Ofício ao lado daquele lá. Não posso. Deus que me perdoe. Dói-me saber que ele acolá na capela onde os ossos do meu pai e da minha mãe estão guardados.
Não quero abrir mais essa janela, o abafado de fevereiro já se foi, agora é mais fresco. O telhado é alto, a casa grande mandei construir bem pensada, no alto, orientada nos ventos. Nunca atinei em ficar prisioneiro nela, fiz gaiola e me tranquei. Que ironia Santo Cristo.
A última vez da janela aberta aquele passou montado perto da varanda, olhou para dentro, me encarou, eu vi. Olhos de gente sem vida, azul embaçado, medonho. Montava o baio Comandante. O cavalo é meu, disse a Amaro, se eu não montar mais o animal se aposenta.
Diabo de nego que não vem mais cá. Bandeou-se pro sarará? Que traição, papai criou ele como meu irmão, nunca foi para o tronco, cresceu livre, bem tratado. Aliás, nunca vi negro nenhum do meu pai no tronco. Não era de castigar os cativos. Puxei a ele, não levantei a mão para um negro da casa até hoje. Será que Amaro se esqueceu de tudo? Ingrato.
Vou mandar chamar mais uma vez, se não obedecer é porque foi mesmo, bandeou-se.
Donana falou de novo em voltar para o quarto. Volto se ele sair da casa.
Disse a ela, só peço que não deixem esse lá entrar aqui no salão azul. Que fique com a casa toda, mas aqui não. É minha última vontade.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Quem Planta Cana em Ladeira 1 e 2 - (laboratório)
Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar
I
Quem planta cana em ladeira e cria filha fêmea está vendo a desgraça na frente a qualquer hora. Foi assim aqui. Cinco filhas, mulheres todas. Deus não me deu a graça de ter um varão para ajudar na lida, para tocar o engenho. Perto de ir-me. Sem ter quem fique no comando. O agalegado aí? Deus que fardo! Vai mandar.
Já manda.
Desde ontem que não ouço o barulho da prensa, mandei chamar Amaro, o negro não apareceu.
- Sinhá, quede Amaro? Num já chamei? O que aconteceu com aquele que não me vem acudir? Quero saber da casa de purgar! E por que a moenda parou?
Tem piorado, não estão mais nem ligando, até a menina do urinol demora na troca. Outro dia o almoço atrasou mais de um quarto. O carrilhão bateu e a comida não chegou. Sinhá veio ontem na hora do terço, só, não veio mais. Ocupada com os bordados do neto que vem, disse ela, filho de Conceição, acho, Socorrinho também está prenha, mas ainda não é para agora. Penso que é de Conceição. Foi a única que tentou me tirar da rede. Fala explicado... ”Vamos senhor meu pai, levante-se daí, vamos comigo”. Mãozinha macia, alisou meus cabelos. Pensei até em ir, ouvi a zoada desse lá, Deus me livre topar, morro ou mato, uma desgraça sobre a nossa família, não quero isso, prefiro largar a vida, sinto que não vou muito longe. É melhor assim, Lúciamaria precisa criar os filhos, filho com pai, mesmo sendo esse daí. Achei que fazia um bom negócio, acordo de cavalheiro, me enganei, o homem é muito ambicioso, fala alto, é chegado a uma arenga. Deus me livre.
As terras que foram do meu pai na mão dele? Que sina. Tanto trabalho para esse daí usurpar, isso mesmo, fui roubado. Sinhá disse que a palavra é muito forte, mas tem outra? Fui roubado no negócio, o trato foi feito para o dote, antes do casamento, se apoderou depois. Foi tomando tudo, não peitei quando devia, agora é tarde.
II
Maria de Jesus casei logo. No Cais da Alfândega conheci o velho Rego Barros, na negociação do açúcar. As sacas do demerara dele descendo da barcaça. Trocamos um dedo de prosa, homem de bem, boa procedência. Como se fosse hoje. Encontramo-nos mais tarde na confeitaria, boa palestra:
- Tenho um filho bom para casar – disse o velho alisando o cavanhaque – suas filhas? Tem alguma moça?
- Tem Jesus, passou dos doze, é moça feita.
Acertamos tudo lá. Marquei a visita, fui buscar o rapaz na estação. Chuva que Deus mandou! Muita chuva. Fomos, Amaro arreou a montaria – novo o negro era disposto -, de confiança. O moço chegou acompanhado de um primo, também da Mata Norte, combinamos o casório. Foi-se Maria de Jesus, até hoje. Sete filhos, vive lá, não me deu trabalho. Quase não teve dote, o velho era contra o costume:
- Tenho terra demais, o menino vai ficar com quase tudo, guarde para as outras.
Guardei mesmo. Deus só me deu filha. Ficando mais velha, mais difícil fica. Trabalhei minha vida toda para juntar. O meu e o dos genros. Não tive sorte, ninguém para me ajudar na labuta. Vivi só toda vida.
Escolhi o salão azul por causa dessa janela. Agora já não estou nem com coragem de mandar abrir. Medo de olhar. Por que será que não ouço o engenho moendo?
Fico nervoso. Os nervos estão acabados. Basta pensar naquele homem fico tremendo por dentro. O coração dá um baque. Coisa ruim. Puxei ao lado da minha mãe. Nunca pensei, mas puxei. Depois de velho começou o atrapalho todo. Nervoso. Os nervos acabados.
I
Quem planta cana em ladeira e cria filha fêmea está vendo a desgraça na frente a qualquer hora. Foi assim aqui. Cinco filhas, mulheres todas. Deus não me deu a graça de ter um varão para ajudar na lida, para tocar o engenho. Perto de ir-me. Sem ter quem fique no comando. O agalegado aí? Deus que fardo! Vai mandar.
Já manda.
Desde ontem que não ouço o barulho da prensa, mandei chamar Amaro, o negro não apareceu.
- Sinhá, quede Amaro? Num já chamei? O que aconteceu com aquele que não me vem acudir? Quero saber da casa de purgar! E por que a moenda parou?
Tem piorado, não estão mais nem ligando, até a menina do urinol demora na troca. Outro dia o almoço atrasou mais de um quarto. O carrilhão bateu e a comida não chegou. Sinhá veio ontem na hora do terço, só, não veio mais. Ocupada com os bordados do neto que vem, disse ela, filho de Conceição, acho, Socorrinho também está prenha, mas ainda não é para agora. Penso que é de Conceição. Foi a única que tentou me tirar da rede. Fala explicado... ”Vamos senhor meu pai, levante-se daí, vamos comigo”. Mãozinha macia, alisou meus cabelos. Pensei até em ir, ouvi a zoada desse lá, Deus me livre topar, morro ou mato, uma desgraça sobre a nossa família, não quero isso, prefiro largar a vida, sinto que não vou muito longe. É melhor assim, Lúciamaria precisa criar os filhos, filho com pai, mesmo sendo esse daí. Achei que fazia um bom negócio, acordo de cavalheiro, me enganei, o homem é muito ambicioso, fala alto, é chegado a uma arenga. Deus me livre.
As terras que foram do meu pai na mão dele? Que sina. Tanto trabalho para esse daí usurpar, isso mesmo, fui roubado. Sinhá disse que a palavra é muito forte, mas tem outra? Fui roubado no negócio, o trato foi feito para o dote, antes do casamento, se apoderou depois. Foi tomando tudo, não peitei quando devia, agora é tarde.
II
Maria de Jesus casei logo. No Cais da Alfândega conheci o velho Rego Barros, na negociação do açúcar. As sacas do demerara dele descendo da barcaça. Trocamos um dedo de prosa, homem de bem, boa procedência. Como se fosse hoje. Encontramo-nos mais tarde na confeitaria, boa palestra:
- Tenho um filho bom para casar – disse o velho alisando o cavanhaque – suas filhas? Tem alguma moça?
- Tem Jesus, passou dos doze, é moça feita.
Acertamos tudo lá. Marquei a visita, fui buscar o rapaz na estação. Chuva que Deus mandou! Muita chuva. Fomos, Amaro arreou a montaria – novo o negro era disposto -, de confiança. O moço chegou acompanhado de um primo, também da Mata Norte, combinamos o casório. Foi-se Maria de Jesus, até hoje. Sete filhos, vive lá, não me deu trabalho. Quase não teve dote, o velho era contra o costume:
- Tenho terra demais, o menino vai ficar com quase tudo, guarde para as outras.
Guardei mesmo. Deus só me deu filha. Ficando mais velha, mais difícil fica. Trabalhei minha vida toda para juntar. O meu e o dos genros. Não tive sorte, ninguém para me ajudar na labuta. Vivi só toda vida.
Escolhi o salão azul por causa dessa janela. Agora já não estou nem com coragem de mandar abrir. Medo de olhar. Por que será que não ouço o engenho moendo?
Fico nervoso. Os nervos estão acabados. Basta pensar naquele homem fico tremendo por dentro. O coração dá um baque. Coisa ruim. Puxei ao lado da minha mãe. Nunca pensei, mas puxei. Depois de velho começou o atrapalho todo. Nervoso. Os nervos acabados.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Passou no Meu Écran - 07
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