terça-feira, 11 de agosto de 2009

Quem Planta Cana em Ladeira 5 e 6 - (laboratório)

Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar.


V
Conceição demorou um pouco, ficou mais complicado arrumar terra. Comprei um pedaço mais pro sul, preparei para ela: Derrubei a mata; plantei de cana; fiz um cercado bom, mandei buscar umas reses no sertão. Pouca terra, mas uma beleza, muita água, muita produção. Um bom dote para começar uma vida.
Acertei com o Senhor José Cabral de Melo Azevedo do Engenho Roda d’água, com o filho mais novo dele, Inácio, foi um bom negócio, o velho era sovina, mas boa gente. Procedência. Fez questão do dote todo e ainda regateou, mandei mais vinte cabeças, quatro negos moços. Depois do casamento quase não deixou mais a menina aparecer. É um doce ela, os Melazedos são de muitas reservas, esquisitices. Conceição me contou que tem que ser muito astuta para viver naquela família. A menina chega a furta da conzinha umas sacas de farinha para os escravos, economizam comida, pecado, os cativos comendo pouco, passando privação. Não tolero desperdícios, gulas, exageros, mas, fartura na mesa é agradecimento à clemência de Deus. Ele dá, nós temos que distribuir.
A avareza o velho Melazedo não inventou, herdou. Meu pai contava que viu muitas vezes, no tempo que o Senhor José era menino, por artes do pai dele, um neguinho vestido de encarnado montado na cancela do engenho. Para os viajantes da estrada real o menino recitava o recado aos berros: “Seu Melazedo quebrou, o engenho esse ano não mói dez sacas, a cana flechou a enxurrada lavou as touceiras das encostas, é muito prejuízo para um cristão só, tá arruinado o meu senhor”. Espantava quem pudesse pensar em pedir qualquer coisa. A miserabilidade vem de longe. Todo mundo sabe.
VI
Na minha casa sempre teve fartura à mesa, meu pai ensinou isso a nós todos, comida não se estraga, mas também não economiza. Contava que tio Francisco, senhor do Linda Flor, certa vez, acolhendo um viajante que pediu guarida, um mascate, sentou-o à mesa com todo mundo, almoçavam as visitas, conhecidas ou não, a mesa principal, da família. O homem não tinha muita educação, comeu feito um bicho, meu tio mandou buscar mais na conzinha, duas vezes. Para a sobremesa chegou duas terrinas grandes, uma com o mel do engenho e outra com farinha, porção farta, dava para todos da mesa. O homem pegou a cuia do mel, derramou a de farinha dentro e comeu tudo, na vasilha mesmo, sem deixar nada para ninguém. Ao acabar, limpou a boca e disse de pilhéria: “Não tem mel nesse engenho não? “ Meu tio nada respondeu, deixou o homem seguir a viagem, ia à capital, o Senhor do Linda Flor adiou a desforra. Tempos depois, na volta, o mascate pediu novamente abrigo, Tio Chico acolheu. Deu-lhe almoço, no fim da refeição disse que tinha um “melzinho” para a sobremesa. Mandou dois escravos trazerem um tacho cheio de mel, colocou um saco de farinha dentro, armou os negros com chibatas, e ordenou: “façam-no comer tudo, se parar abaixe o chicote nele”. O infeliz não morreu porque a Sinhá minha tia intercedeu. Ele não passara ainda de um quarto do tacho e já se esvaia em disenterias, nas calças mesmo, diante de todos. Tio soltou o cristão que se foi correndo, desmoralizado, nunca mais passou nem por perto do engenho. Aprendeu a não desfazer de quem oferece amparo.
Acho que vou mandar abrir a janela, ouvi uma conversa que aquele tinha ido à capital vender o açúcar, melhor não, o vento virou sul, a friagem é capaz de me resfriar. Sinhá Donana não veio hoje aqui. A negrinha não tirou o pinico, meu café tava frio, deu-me uma melancolia. Vou numa madorninha, quem sabe sinhá não chega me trazendo umas compotas?

Um comentário:

  1. não conhecia o seu blog,primo.Fernando foi que me avisou a respeito dele.Gostei.Humor e inteligência na medida que o espaço virtual exige.O traçado economico do silogildo lhe deu uma versatilidade e graça ideais:me lembrou o bom henfil.Acho que o desenho é toda a força da obra,e as palavras apenas lhe servem - quando for necessário - para lhe dar expressão e comunicabilidade.Já os capítulos da história dos Melazedo,me fizeram pensar em zé lins: o de fogo morto,moleque ricardo,etc...,com sua narrativa carregada de oralidade... seria a temática? ou o lugar da escrita?abraços e até a próxima.Paulo Gervais

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