quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Quem Planta Cana em Ladeira 3 e 4 - (laboratório)

Esboço de uma tentativa de romance em capítulos curtos de uma velha história da cultura do açucar

III
Tio Artur do Mamucaba, irmão de minha mãe. Eu caçoava dele. Não tinha juízo, achava. Mamãe não gostava. Respeitava. Hoje entendo o nervoso dele. Um dia ia para a feira montado numa besta, muita chuva, o massapé escorregando, lama lisa. Na curva antes da ponte do Una, ponte comprida, no meio de duas curvas, já chegando, o arreio correu, sela molhada, animal liso, ensopado, tio caiu na lama. Destroncou um ombro, sentiu muita dor.
Nunca sarou de todo.
O nervoso não deixou mais o pobre. Toda vez, chegando à curva, dizia à mulher que seguia em outra montaria, “vou cair Sinhá, vou cair”, e caia, quase sempre caia mesmo. A mulher já mandava um moleque desmontado acompanhando, para aparar a queda. Caia sempre, o nervoso derrubava. Sei agora o que é isso. Minha mãe também. Os nervos muito fracos. Tinha muito medo da morte. Dormia com o escapulário amarrado. Se passasse mal e perdesse os sentidos não perigava tirarem no alvoroço do socorro. Com escapulário Nossa Senhora ajuda nos desembaraços da entrada do céu. O meu não largo, puxei, nisso puxei. Minha mãe botou para morrem muitas vezes de nervoso, de chamar padre para as unções, depois melhorava, passava a agonia, voltava boazinha. Morreu muito velha, variando, não sabia de nada, perdeu o tino e o medo. Deus foi bom com ela.
Quando eu era novo não ligava muito, sentia uns sustos, uns vazios na boca do estomago, mas não deixava me abater, a lida era grande, tinha que arrancar da terra sustento e o dote das meninas.
Com Socorrinho e Carmita não penei muito, acertei com um parente meu daqui de perto, Senhor Dácio Cavalcanti do engenho São Pedro. Casei as duas com os dois filhos deles, dei o Mamucabinha a uma e a parte maior do Pedra Alta a outra. Ficou tudo em casa, gente de bem, conheço toda a linhagem quase todos da região são Cavalcanti. Quem não é Cavalcanti é cavalgado. Cavalcanti tê-i-tí como dizia o meu pai, dos autênticos.
IV
Dessa janela vejo o curral, a capelinha, a roda d’água do engenho e a casa de purgar. Vejo quando Sinhá Donana vai rezar na capela, avisto a sombrinha bordada, as amas acompanhando, carregando os terços e missais. Nesse Santo Antônio trouxe padre para rezar missa. Não fui, rezei daqui, o santo sabe do meu tormento. Não vou ao Ofício ao lado daquele lá. Não posso. Deus que me perdoe. Dói-me saber que ele acolá na capela onde os ossos do meu pai e da minha mãe estão guardados.
Não quero abrir mais essa janela, o abafado de fevereiro já se foi, agora é mais fresco. O telhado é alto, a casa grande mandei construir bem pensada, no alto, orientada nos ventos. Nunca atinei em ficar prisioneiro nela, fiz gaiola e me tranquei. Que ironia Santo Cristo.
A última vez da janela aberta aquele passou montado perto da varanda, olhou para dentro, me encarou, eu vi. Olhos de gente sem vida, azul embaçado, medonho. Montava o baio Comandante. O cavalo é meu, disse a Amaro, se eu não montar mais o animal se aposenta.
Diabo de nego que não vem mais cá. Bandeou-se pro sarará? Que traição, papai criou ele como meu irmão, nunca foi para o tronco, cresceu livre, bem tratado. Aliás, nunca vi negro nenhum do meu pai no tronco. Não era de castigar os cativos. Puxei a ele, não levantei a mão para um negro da casa até hoje. Será que Amaro se esqueceu de tudo? Ingrato.
Vou mandar chamar mais uma vez, se não obedecer é porque foi mesmo, bandeou-se.
Donana falou de novo em voltar para o quarto. Volto se ele sair da casa.
Disse a ela, só peço que não deixem esse lá entrar aqui no salão azul. Que fique com a casa toda, mas aqui não. É minha última vontade.

Um comentário:

  1. Estou gostando, principalmente agora que não estou tentando mais identificar ninguém.
    Marthinha.

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